Pesquisa mostra que o consumo de receitas tradicionais (como tropeiro e frango com quiabo em Minas) aumentou nos primeiros meses do ano
Tropeiro, frango com quiabo, tutu de feijão, leitoa à pururuca. Pratos que fazem parte da cultura dos mineiros e ganham cada vez mais espaço no cardápio do dia a dia. É o que aponta pesquisa do Instituto Brasil a Gosto e da plataforma de delivery 99Food sobre o consumo de comida típica pelos brasileiros nos primeiros meses do ano. Pelo menos metade dos entrevistados optaram por comer receitas tradicionais da sua região. A pandemia influenciou diretamente o resultado.
A pesquisa ouviu 1515 pessoas entre janeiro e maio. De acordo com os dados coletados, 41% dos brasileiros entendem que consumir pratos típicos está ligado principalmente à valorização da cultura, enquanto 28% acreditam que é uma forma de manter a tradição.
O resultado foi uma grata surpresa para a diretora de conteúdo do Instituto Brasil a Gosto Bel Moherdaui. A ONG fundada em 2016 pela chef Ana Luiza Trajano, que trabalha pela valorização de ingredientes e histórias ligados à nossa cozinha, quer justamente que o brasileiro olhe com orgulho para o seu prato. “Comida tem a ver como o nosso passado e nos aproximarmos dela é uma forma de conhecermos mais sobre nós mesmos, sobre o nosso país e as nossas origens”, observa.
Outro dado interessante é que 29% dos entrevistados consomem receitas tradicionais para se conectar com os seus familiares. Aqui entram os efeitos da pandemia. “Num momento em que todo mundo precisa de carinho e conforto, a comida brasileira traz isso para dentro da nossa casa. É a comida do afeto, que lembra alguém, que resgata alguma memória”, analisa Bel.
A partir da pesquisa, o Instituto Brasil a Gosto e a 99Food lançaram o projeto Cozinheira e Brasileira para contar a história de quem faz a comida do dia a dia. As mulheres, automaticamente, viraram protagonistas.
Cozinha feminina
Bel lembra que a cozinha brasileira é feminina, a começar pelas indígenas, consideradas as primeiras cozinheiras do Brasil. Depois vieram as mulheres escravizadas e até hoje as mulheres são associadas ao que se chama de comida caseira. “As cozinheiras do dia a dia são donas de casa, avós e mulheres que empreendem a partir da comida.” Neste primeiro momento, foram selecionadas três mulheres, de seis cidades brasileiras, que comandam restaurantes parceiros da plataforma de delivery. “Não são restaurantes estrelados, são restaurantes do dia a dia, que servem marmita. Em muitos casos, estas mulheres trabalham sozinhas.” O projeto começou por Belo Horizonte e Recife, depois vai para Manaus, Porto Alegre, Goiânia e Salvador.
Cada uma das mulheres ensina dois pratos característicos da sua região e que fazem sucesso no cardápio dos seus restaurantes. Todas as receitas foram testadas e estão disponíveis no site www.cozinheirabrasileira.com.br.
Uma das representantes de BH é Poliana Madureira, de 41 anos. “Minha vida se resume a comida”, diz a cozinheira, que cresceu vendo a mãe, costureira, fazer comida gostosa e cheirosa. Com sete anos, de tanto insistir, preparou o primeiro almoço sozinha (carne de sol em tiras, arroz, feijão e repolho refogado) e não largou mais o fogão. Sempre fala que é o que mais gosta de fazer. Depois de cozinhar por 12 anos para a diretoria de uma empresa, Poliana decidiu abrir o seu próprio negócio. Montou uma barraquinha de macarrão na chapa na porta de casa, no Bairro Céu Azul, com a irmã. Daí o nome Macarrão das Meninas, como elas ficaram conhecidas. “Macarrão é muito procurado por ser um prato único, mas completo. Se você souber trabalhar com a massa, tudo o que colocar vai ficar maravilhoso”, observa.
Tropeiro: o campeão de vendas
O cardápio do almoço é bem diversificado. Poliana aprendeu a maioria das receitas com a mãe e com outras mulheres da família, sempre muito ligada à comida. O prato mais conhecido é o tropeiro, a base de feijão-carioca, linguiça, bacon, ovo e farinha de mandioca. Para acompanhar, arroz, couve, ovo frito, torresmo e uma carne do dia. Destaque também para o tutu de feijão com arroz, espaguete, ovo cozido, couve, torresmo e carne.
Poliana arranca elogios dos clientes com uma comida “fresca e gostosa”. O segredo, ela explica, está na dedicação. “Quando você gosta do que faz, faz com tanto amor e carinho que o tempero fica perfeito. Acho que isso é a chave do meu negócio. Uso ingredientes que você encontra em todos os lugares, carnes, verduras, macarrão, mas dedico a minha vida a eles.”
Na cozinha do restaurante, não tem nenhuma panela grande. Poliana prefere fazer pequenas porções para servir sempre tudo bem fresco. “Se precisar, volto e faço 10 vezes a mesma coisa para o cliente encontrar sempre uma comida de qualidade.” A cozinheira tem planos de abrir um self-service para servir todo o tipo de comida que aprendeu ao longo da vida. “O meu sonho é que pessoas de outros lugares venham comer a minha comida.” Enquanto junta dinheiro para conseguir fazer a expansão, ela segue com uma certeza: continuar criando os cinco filhos com o que sabe e ama fazer, que é cozinhar.
Segundo Bel Moherdaui, do Instituto Brasil a Gosto, o objetivo do projeto vai além de aumentar o consumo nos restaurantes das participantes. “Queremos mostrar um pouco mais de Brasil para os brasileiros e ver cada vez mais gente comendo comida brasileira. Você só vai comer a comida da Poliana se estiver em BH, mas pode fazer um prato dela na sua casa.” A próxima etapa será o lançamento de uma websérie com a história de três mulheres, incluindo Poliana.
Comida de mãe
De Goiânia, a empreendedora Luciene Caetano dos Santos, de 48 anos, mais conhecida como Nena, sempre teve mão boa para cozinha, mas não se imaginava dona de restaurante. Ela trabalhou como locutora de rádio, cobradora de ônibus, telefonista, operadora de telemarketing e virou cozinheira por acaso, quando foi dar uma ajuda para o filho na padaria dele. “Como ele tinha mais de cinco funcionários, me pediu para fazer o almoço. Os vizinhos sentiam o cheiro e o meu filho começou a vender marmita dentro da padaria.”
Formada em gestão de recursos humanos, Luciene sempre quis montar um negócio e, naquele momento, viu a oportunidade de abrir o Restaurante da Nena. Em quase três anos, ela conseguiu conquistar uma clientela fixa (alguns de segunda a sábado) com uma comida bem caseira. “Uma das frases que mais escuto é: me lembrei da comida da minha mãe”, conta.
Na sua cozinha, a regra é amassar o alho na hora de temperar a comida. Nada de comprar tempero pronto. Luciene prepara tudo sem experimentar, segue seu feeling e o sabor da comida não muda. “Tem aqueles dias em que não estou bem, lembrando das contas para pagar, mas, quando chego na cozinha, esqueço que tenho problemas”, comenta, feliz por receber elogios todos os dias. Sexta-feira é o dia de vaca atolada. É bom chegar cedo, porque o prato acaba muito rápido. Exigente desde as compras, Luciene escolhe a costela mais magra e, mesmo assim, tira o excesso de gordura. A carne, temperada com alho, sal, pimenta-do-reino e de cheiro e colorau, vai para para a panela de pressão sem nem uma gota de água para não perder sabor.
Quando a costela está se soltando do osso, ela mistura a mandioca, cozida em outra panela de pressão, e deixa o caldo engrossar. Depois é só finalizar com cheiro verde e a vaca atolada está pronta. Normalmente, é servida com arroz, feijão, macarrão, abóbora cabotiá, jiló e salada.
Quando abriu o restaurante, Luciene trabalhava sozinha. Fazia as compras, cozinhava e atendia os clientes. Depois percebeu que, com uma ajudante, poderia vender mais pratos e hoje chega a servir 50 por dia. Diz que não vende mais porque não dá conta, mas pretende ampliar o negócio. Planeja, no ano que vem, se mudar para um espaço maior, contratar mais pessoas e montar um self-service. “Achava que o meu talento era ser locutora de rádio, mas hoje penso o meu futuro com comida. Quero continuar cozinhando com o tempero do amor.”
Por Celina Aquino
Foto: Internet